quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A nova fisionomia do Projeto Pixinguinha (repercussão)

Prezados amigos,
Repasso a vocês, abaixo, um protesto redigido por Paulo César Feital contra a alteração em recente edital da Funarte que transfigura em profundidade o Projeto Pixinguinha e, ironicamente, ainda lhe mantém o nome. Também lamento tal mudança de enfoque e ação do projeto pela instituição estatal, já que o procedimento frustra a essência da generosa e animadora iniciativa das caravanas, por meio das quais a identidade polirrítmica da nossa música robustecia-se nacionalmente e artistas de valor do passado e do presente, de todas as regiões, juntavam-se no itinerário dos shows, num valioso serviço prestado ao público e à cultura do país.
Um bom dia a todos. Muito obrigado pela atenção à importante e lúcida reflexão, redirecionada e com fundamento histórico, do mencionado poeta, letrista e autor teatral, escrita com a franqueza que lhe é peculiar.
Um abraço,
Gerdal
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From: Fábrica de Orvalho <fabricadeorvalho@globo.com>
Date: 2008/9/11
Subject: Fw: a Horda & Projeto Pixinguinha
To: Fabrica de Orvalho <fabricadeorvalho@globo.com>



Nasci num sábado de carnaval. Fevereiro, década de cinqüenta. Dei-me conta da minha geração e senti-me agraciado por Deus ao testemunhar o aparecimento de uma constelação com tantas estrelas de primeira grandeza. O fulgor poético de Chico, o brilho ousado de Caetano, Gil e Milton; o fogo cadente de Vandré; o lume de Torquato e a claridade de Edu, Dori, Ivan, Gonzaga, Aldir, Djavan, João do Vale,João Bosco, Elis, Clara, Bethânia,Nana,Lenny, etc...

E o samba?

Na mesma constelação, pulsando em dois por quatro, cintilavam Cartola, Candeia, Wilson, Elton, Paulinho, Nelson e Guilherme, Mauro Duarte, Mano Décio, Nogueira, Martinho, Marçal, Monarco, Noca, Clementina, Dona Ivone, Zé Ketti e tantos outros. O fulgir dessa constelação atrapalhava os planos da horda da escuridão e anulava a intenção do poder oficial de controlar a população. Para isso era preciso arrancar da terra a árvore da liberdade de expressão e a juventude brasileira convivia com o que de melhor suas raízes geravam. A poesia aprendera a driblar a censura e o povo a ler no subtexto a sutileza das denuncias. Mas a horda da escuridão era, e é, de grande poderio. Acreditavam, os habitantes do breu da época, na força do espírito militarista, e, por acreditarem, tornaram-se poderosos. Hoje, crêem na força do capitalismo selvagem, na mídia venal, no vil metal que corrompe, na ambição sem fronteiras e, por acreditarem, tornaram-se mais poderosos que seus dinossauros. Criaram o exército da mediocridade. O medíocre trabalha vinte e quatro horas e o talento dorme em berço esplêndido. Um alto comando, inteligente e cruel, concluiu que, para conquistar seus objetivos seria necessário o rompimento da memória nacional, o esfacelamento do pensamento coletivo e a destruição da imaginação. As primeiras cobaias foram seus próprios soldados. Iniciou-se uma perseguição implacável. Em postes, tapumes e muros eram afixados cartazes: "PROCURA-SE, VIVA OU MORTA, A GENUÍNA MÚSICA BRASILEIRA". Frevos, baiões, baladas, choros, marchas, modas, jongos e valsas abrigaram-se na alma ferida de seus criadores. A década de oitenta, a mais estéril do século, já sob o domínio da segunda geração da horda, que trocara a farda de seus pais pelo terno e gravata e assumira altos cargos na indústria fonográfica e secretarias de cultura, devastou qualquer pretensão de reação da Arte brasileira. Um som sem harmonia, melodia e poesia inundou o país de norte a sul. O novo dizia que "pra mim fazer amor" não era preciso concordância. O enlatado, expulso do seu torrão de origem, encontrava abrigo nos meios de comunicação aclamado pelos vendidos ou lavados cerebralmente. Os filhos da horda,começavam a criar a terceira geração. Uma geração sem assobio.

A música é que situa no tempo os fatos marcantes de uma vida. Uma grande desilusão, um grande amor, uma passagem política, enfim, a nossa história. Essa geração, no outono da sua existência, terá que bater o pé no chão, tendo dentro de suas cabeças o som monocórdio do bumbo eletrônico. Uma imensa paixão, bum,bum,bum..., Uma perda irreparável, bum,bum,bum... Triste, mas real. As indústrias filiadas a horda, através dos homens que as comandam, prantearão um dia a imbecilidade de seus filhos vítimas inocentes da desmedida ambição. É preciso contra- atacar. É vital que passemos para nossos herdeiros o que foi, o que é e o que é preciso ser.

Mas, e o samba? Durante todo esse período, mais malandro, mandingueiro, guerrilheiro, caíra na clandestinidade. Retornara às suas origens e encarnara, como sempre lhe coubera na história, o papel de liderança do movimento de resistência. Ele sabia que teria que planejar um trabalho a longo prazo, em segredo e recolhido. Um trabalho que até hoje se estende e que começa a dar frutos. Democrático, promoveu a queda das fronteiras da verdadeira criação. Misturou Lapa com Leblon, calçada com viela, violinos com cavaquinhos. Uniu poetas e compositores urbanos aos populares. Elton Medeiros, Nelson Sargento, Carlinhos Vergueiro, Luiz Carlos da Vila, Aldir Blanc, Jota Maranhão, Jorge Simas,Paulo César Pinheiro, Paulinho Tapajós, Noca da Portela, João Nogueira, Claudio Jorge, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Ney Lopes, entre outros, são cantados por Nilze Carvalho, Roberta Sá, Thereza Cristina, Diogo Nogueira e tantos outros representantes da nova safra.

Hoje misturam-se e formam um só bloco. Centenas de composições guardadas no celeiro do samba a espera da invasão. Enquanto isso, a horda, como um polvo, estende seus tentáculos em todas as direções. Mataram a galinha dos ovos de ouro e num último suspiro tentam roubar o pouco que resta para o artista: o palco! Não podem deixar nenhum buraco vazio. Sim, pois a mediocridade é monetariamente poderosa, a serviço da inteligência diabólica, mas, ao mesmo tempo, vulnerável ao menor avanço do talento. Por isso ela é vítima de sua própria vigília. Não pode dormir. É obrigada a inventar a cada minuto aparições ridículas e investir segundo após segundo, milhões, para a preservação do patético. É exaurida pela própria mediocridade. Não freqüenta as reuniões da CRIAÇÃO porque não pode apresentar nada mais que ridículas cópias do ridículo. Ninguém a humilha. Ela já nasce humilhada. E A GENUÍNA MÚSICA BRASILEIRA sabe disso. Basta que conscientize seus poetas e compositores que ACREDITAR É PRECISO!

Observação:

Consternado, testemunho o assassinato com resquícios de crueldade do Projeto Pixinguinha. O corpo jaz abandonado no hall da Funarte, velado pelos próprios sicários. Em paga pela vergonha, oferecem dois CDs por estado e alguns "capilés". É triste! É deprimente e melancólica a quase nula reação da classe musical do país. Salvo a matéria do Hermínio, no Globo, a crônica do Claudio Jorge no próprio blog e algumas reações isoladas, ouve-se em cada esquina a insatisfação de músicos, cantores e compositores, mas, nada que se efetive concretamente.

Os matadores, após desovarem o corpo, hipocritamente, ainda roubaram a identidade do morto e conservaram o nome do projeto na vergonha que inventaram.

Esse defunto ainda é Lázaro: pode ser ressuscitado!

É o momento de abandonar o silêncio.

Paulo César Feital

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